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“Hoje tem Sinfônica”, comentou o Armando, colega de trabalho. “Onde?”, perguntei, pois não sabia de nenhuma orquestra que se apresentasse na cidade naquela noite. “Na Vila”, ele respondeu. “É que o peixe joga por partitura”, completou: A passagem é dos anos 60, do tempo em que Pelé ainda atuava no Santos F.C.
A lembrança é oportuna, neste mês de agosto de 2011, em que a música se torna conteúdo obrigatório de Educação Artística, nas séries de Educação Básica (Ensino Fundamental e Médio), segundo a Lei n. 11.769/2008 que, promulgada no mesmo mês de 2008, estipulou o prazo de três anos para as escolas cumprirem a determinação.
É oportuna também porque há uma espécie de crença generalizada sobre um suposto dom especial e inato do brasileiro, tanto para o futebol como para a música. “No Brasil, a criança já nasce com a bola no pé” é um dito popular. Outro diz que “o brasileiro é um povo essencialmente musical”.No futebol, essa crença deu sustentação, durante muito tempo, ao amadorismo e à irresponsabilidade gerencial do esporte, representados pela emblemática figura do cartola.
Isso começou a mudar quando o futebol-negócio mostrou sua pujança econômica. Neymar é a bola da vez dessa realidade mercadológica. Recente reportagem em uma revista de circulação nacional expôs os cuidados de que o atleta é cercado, desde os seis anos de idade, quando o seu potencial atlético foi vislumbrado. Atualmente, existe um incrível aparato estrutural e técnico para detectar e desenvolver talentos esportivos, começando já na pré-escola e daí para escolinhas de futebol e equipamentos afins.
Na música, entretanto, a crença permanece um entrave para o desenvolvimento musical no Brasil. Parece haver um entendimento tácito de que, pela sua musicalidade intrínseca, o brasileiro não precisa estudar música, não precisa se preparar. Para quê, se suas habilidades brotam e se desenvolvem espontaneamente? Crença que, além de ingênua, revela arrogante desconsideração para com os outros povos, tão musicais, ou mais, que o nosso.
Face mais desastrosa dessa postura: a música é relegada, nos anos 70, à condição de conteúdo opcional da disciplina Educação Artística e, na prática, deixa de ser estudada nas escolas. Noções de teoria musical e canto coral são substituídos por discos de sucesso para o público infantil, repertório de duvidoso valor educativo, servindo de fundo sonoro de festividades. A situação se agrava nos anos 80. Enquanto os clubes esportivos vão recebendo incentivos oficiais e patrocínios empresariais, e as escolas e universidades incrementam atividades esportivas, esforços equivalentes para a área musical não só vão minguando, como desaparecendo.
Nos anos 90, um conhecido colunista da grande imprensa chegou a fazer insistentes apelos por uma profissionalização empresarial da MPB, face ao seu valioso potencial como produto de exportação, que deveria contar com apoio promocional do governo, interna e externamente. E se isso acontece com a música popular, o que dizer da situação da música erudita, justamente aquela que foi escolhida pelo meu colega de trabalho como elemento de comparação entre excelência esportiva e excelência musical?
Para que uma cultura musical forte e desenvolvida floresça é necessário acrescentar ao dom inato um grande esforço de aprendizagem e dedicação. Como acontece no futebol, vide o caso Neymar. Assim como um talento esportivo se constrói com prática contínua desde a pequena infância, a música também envolve um longo percurso de apuração técnica e percepção estética. Para isso, é vital que já nas escolas básicas as crianças tenham oportunidade de escutar e vivenciar obras musicais que representam universos mais amplos, diversos e profundos das linguagens musicais.
Esse é certamente o grande desafio do importante jogo cultural que começa neste mês de agosto, com o retorno obrigatório da educação musical às escolas. O desafio é imenso porque a realidade midiática atual criou novos condicionamentos, e os métodos tradicionais de ensino musical sofrem severos questionamentos, não havendo consenso sobre como operar essa retomada.
Por isso, assim como o futebol precisa de técnicos capazes e dirigentes responsáveis, a grande preocupação deve ser a formação de educadores diferenciados para uma nova realidade do ensino musical de crianças e adolescentes, capacitados para promover uma nova mentalidade em relação à prática e à escuta musical. Tomando como referência uma antiga cantiga de roda, esses professores deverão rebolar a bola, isto é, bolar novas soluções educativas, recriar a música, ampliando a percepção musical dos alunos para todas as possibilidades da música. Rebolar a bola, repensar o mundo,
Estamos vivendo apenas o início de um recomeço. O que se conseguiu com a Lei n. 11769 não é o ideal, está longe disso ainda, se compararmos com a situação que o futebol já vem vivendo. Mas é um horizonte que não pode fugir da visão dos novos educadores, que certamente vencerão quantos jogos forem necessários para conquistar esse espaço de mudança cultural.
Até que tenhamos em nosso país estrutura semelhante ao que existe em países de larga tradição musical, onde talentos artísticos também são pinçados em tenra idade, e de onde nascem grandes e refinados intérpretes e criadores da música, que conferem prestígio cultural a seus países. Ou, para retornamos à comparação inicial entre música e futebol, um esquema sistemático para descobrir e desenvolver os Neymar da música.
Gil Nuno Vaz em agosto/2011
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